Em um único dia, um paciente “conseguiu ser atendido” 201 vezes
em uma clínica de Água Branca, no Piauí. A proeza não parou por aí –o valor das
duas centenas de consultas foi cobrado do SUS. O mesmo local cobrou tratamentos
em nome de mortos.
Da
Folha de S. Paulo
Casos assim explicam como, em cinco
anos, cerca de R$ 502 milhões de recursos públicos do SUS foram aplicados
irregularmente por prefeituras, governos e instituições públicas e
particulares.
Esse meio bilhão, agora cobrado de volta
pelo Ministério da Saúde, refere-se a irregularidades identificadas em 1.339
auditorias feitas de 2008 a 2012 por equipes do Denasus (departamento nacional
de auditorias do SUS) e analisadas uma a uma pela Folha.
Um dos problemas mais frequentes são os
desvios na aplicação de recursos –quando o dinheiro repassado a uma área
específica da saúde é aplicado em outro setor, o que é irregular.
Também há casos de equipamentos doados e
não encontrados, cobranças indevidas, problemas em licitação e prestação de
contas, suspeitas de fraudes e favorecimentos.
Com o valor desviado, por exemplo,
poderiam ser construídas 227 novas UPAs (unidades de pronto atendimento) ou,
ainda, 1.228 novas UBS (unidades básicas de saúde). O orçamento do ministério
em 2012 foi de R$ 91,7 bilhões.
Para burlar as contas do SUS, gestores
falsificam registros hospitalares ou inserem em seus cadastros profissionais
“invisíveis”.
Em Nossa Senhora dos Remédios, também no
Piauí, de 20 profissionais cadastrados nas equipes do Programa Saúde da Família,
15 nunca haviam dado expediente.
Em Ibiaçá (RS), remédios do SUS foram
cedidos a pacientes de planos de saúde.
As íntegras desses e de outras centenas
de auditorias estão disponíveis no site do Denasus. Mas, para ter acesso às
fiscalizações, a Folha pediu dados ao governo federal via Lei de Acesso à
Informação.
A maior parte dos desvios foi constatada
em auditorias cuja principal responsável pela gestão dos recursos era a
prefeitura (73% do valor), seguido dos Estados (15%). O restante é dividido em
clínicas particulares, instituições beneficentes e farmácias.
Das 1.339 auditorias analisadas pela
Folha, 113 têm o ressarcimento calculado em mais de R$ 1 milhão cada.
Para o Ministério da Saúde, a soma das
irregularidades das auditorias pode ser ainda maior, devido a novos relatórios
complementares dos últimos meses.
Efeitos dos desvios atingem a população
Irregularidades causam reflexos em
hospitais sucateados do Maranhão, em que pacientes esperam horas por
atendimento
Cidade do interior do Estado ‘atendeu’ em
um ano mais pacientes com glaucoma do que sua própria população
Há dois anos, uma auditoria federal
descobriu um desvio de R$ 6,9 milhões em verbas do SUS em Rosário (a 70 km de
São Luís) no interior maranhense.
Entre as irregularidades:
incompatibilidade entre os serviços prestados e os recursos repassados pelo
Ministério da Saúde, despesas sem comprovação e unidades de saúde que deveriam
ter recebido a verba em condições precárias e sem equipamentos.
Na última quarta, no único hospital
público da cidade, uma fila com cerca de 20 mulheres grávidas esperava num
corredor lotado. A maioria havia chegado às 6h da manhã, em jejum. Cinco horas
depois, porém, não havia previsão de atendimento.
“E ainda por cima estou sentindo dor”,
disse a pescadora Maria Viana, 30, sete meses de gravidez.
O hospital –também chamado de Unidade
Mista de Rosário– chegou a ser interditado judicialmente por problemas na
estrutura, segundo o Ministério Público. O cenário é de abandono, com piso
sujo, quartos e laboratórios completamente vazios.
O centro cirúrgico, que recebia
pacientes de outras cidades, também está fechado.
A técnica de enfermagem Ivanilse
Martins, 34, diz ter ficado surpresa com a presença da reportagem. “Aqui,
qualquer coisa mais grave, tem que ir até São Luís.”
AGENDA APERTADA
Para conseguir um consulta com o
oftalmologista no hospital municipal Pedro Vera Cruz Bezerra, em Miranda do
Norte (a 119 km de São Luís), no Maranhão, é preciso encontrar espaço na agenda
do médico –que só atende só atende duas vezes ao mês.
Essa realidade contrasta com os números
encontrados por auditoria local em 2011.
O levantamento mostrou que em um ano, o
hospital chegou a atender 27,9 mil pessoas para tratamento de glaucoma –número
superior a toda a população da cidade. É como se todas as crianças, adultos e
idosos do local precisassem de atendimento para o mesmo problema.
A Folha tentou falar com a secretária da
Saúde e com o prefeito da cidade, mas, segundo funcionários, eles moram em São
Luís (a 138 km da cidade) e só aparecem na cidade duas vezes por semana
OUTRO LADO
Municípios culpam gestões passadas
Marconi
Bimba, apontado como um dos responsáveis pelos desvios do SUS em Rosário.
Responsáveis pela aplicação dos recursos
da saúde, prefeitos e secretários de alguns municípios citados pela reportagem
negaram irregularidades e atribuíram problemas a gestões passadas. “Em dez
meses ninguém consegue melhorar o cenário de vários anos”, disse a atual
secretária da Saúde de Rosário, Mauricéa Lopes. “Até a mesa do parto está
enferrujada. Preferimos deixar como está por ora do que uma mulher morrer por
infecção.”
A crítica à “herança maldita” é compartilhada pelo último
gestor. “Quando assumi nem chave do hospital encontrei”, afirma Marconi Bimba
(PRP), prefeito de Rosário de 2009 a 2012 e apontado como um dos responsáveis
por impropriedades na gestão de R$ 6,9 milhões do SUS na cidade.
Ele reconhece, porém, casos de
irregularidade. “Mas não tem dolo, tem desconhecimento burocrático das regras
do Ministério da Saúde.”
Investigado sob suspeita de desvio de
recursos e relação com agiotas, ele nega e diz que a cidade se divide em brigas
políticas. “Por mais que quisesse desviar dinheiro, roubar tudo da saúde, não
tinha como roubar tantos milhões.”
Em Ibiaçá (RS), o problema é atribuído
ao ex-prefeito João Rudemar da Costa (PDT). A Folha não o localizou. A
Prefeitura de Água Branca (PI) disse que as suspeitas atingem antigas
administrações.
A reportagem não conseguiu contato com a
Prefeitura de Nossa Senhora dos Remédios (PI) e Acará (PA).
MINISTÉRIO
O secretário de Gestão Estratégica e
Participativa do Ministério da Saúde, Luiz Monteiro, diz que a pasta investe em
auditorias preventivas para “evitar o desperdício” dos recursos do SUS.
Segundo ele, houve 5.405 auditorias de
2008 a 2012. Dessas, 1.339 (25% do total) tiveram pedidos de ressarcimento por
problemas na gestão dos recursos, segundo dados obtidos pela Folha.
“Nosso universo auditado é muito
superior [aos casos com problemas]“, diz.
Do total de recursos cobrados, ao menos
R$ 194 milhões já foram restituídos, diz. O restante espera relatórios ou é
questionado na Justiça. Segundo ele, problemas como descumprimento de regras
técnicas podem ser corrigidos em acordos.
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